Categoria: Artigos
14/06/2025 Por: Dom Magnus Henrique Lopes, OFMCap
Hoje é um dia de imenso júbilo para toda a Igreja, um dia de esperança para o povo nordestino e de consolação para todos aqueles que, geração após geração, conservaram no coração uma fé simples, forte e fecunda, nutrida pelas palavras, pelos gestos e pela vida do Padre Cícero Romão Batista.
Louvamos a Deus porque, em sua infinita ternura, quis manifestar sua santidade na figura humilde e firme do Padre Cícero — pastor do povo, homem da reconciliação, consolador dos pobres e amigo dos pecadores. Diante dele, que foi para tantos um sinal visível da misericórdia divina, deixamo-nos tocar por um mistério mais profundo: Deus não se cansa de levantar profetas do meio do seu povo, sobretudo quando este povo caminha entre a seca e a esperança, entre a cruz e a luz.
Hoje, portanto, não celebramos apenas uma etapa da história. Celebramos a fidelidade de Deus, que se fez próxima e visível no sertão, e o milagre da fé vivida no meio do povo — fé que, como o orvalho da manhã, rega a terra ressequida da existência e faz florescer a santidade onde menos se espera. Hoje celebramos a possibilidade de termos no altar da Igreja, alguém que há muito já está no altar do coração do povo. Na véspera de Pentecostes, a Igreja se recolhe em oração para acolher o Espírito Santo, o sopro divino que renova a terra. A liturgia de hoje, curiosamente, nos conduz à antiga história da Torre de Babel (Gn 11,1-9), que a primeira vista parece distante do tema. No entanto, à luz da fé, revela-se como um espelho invertido de Pentecostes.
Em Babel, os homens buscavam subir ao céu por orgulho, confiando apenas em si mesmos. O resultado foi dispersão, confusão e a perda da comunhão. Babel é o símbolo de um mundo que tenta viver sem Deus — e se desfaz. Em Pentecostes, porém, o Espírito desce do céu. Onde havia divisão, Ele semeia unidade. Onde línguas separavam, agora todos compreendem o anúncio na própria língua (At 2,6). O Espírito é comunhão: derruba muros, supera diferenças e nos devolve uns aos outros.
E aqui, queridos irmãos e irmãs, podemos contemplar, com olhos espirituais e coração atento, a figura singular de Padre Cícero Romão Batista como uma testemunha eloquente da ação do Espírito Santo, que sopra onde quer e une os corações mesmo em tempos de dispersão. Amado pelo povo simples, que com seu sensus fidei, nunca deixou de reconhecê-lo como homem de Deus: pastor que não abandonou suas ovelhas, intercessor incansável dos desvalidos, presença reconciliadora entre Céu e terra.
Em Padre Cícero, podemos perceber uma sabedoria que não se impõe pela força do argumento ou pelo prestígio da instituição, mas que brota do coração que reza, do coração compadecido, da escuta atenta, da solidariedade concreta. Ele soube descer às profundezas da alma de todos que chegavam a esta terra. Sua vida nos interpela a considerar que, muitas vezes, o Espírito de Deus age para além das categorias que tentamos rigidamente fixar. Há uma mística que nem sempre conseguimos compreender, uma teologia do povo, que desafia nossos esquemas e purifica nossas certezas.
Hoje, ao olharmos para sua trajetória com os olhos da fé, podemos reconhecer em Padre Cícero uma ponte que, apesar de marcada pelas fissuras das incompreensões, tornou-se profundamente fecunda entre o povo e a Igreja, entre a dor do sertão e a esperança do Reino. Em sua memória, ressoa a bem-aventurança dos que têm fome e sede de justiça, dos mansos, dos pacificadores. E talvez, justamente por isso, ele continue a ser farol e consolo para tantos, sinal de que o Espírito Santo continua soprando as brasas que ainda fumegam nos nossos corações.
Padre Cícero soube falar a língua do povo. Como os apóstolos em Pentecostes, tornou-se intérprete do Evangelho na comunicação simples e vibrante do sertão. Não se escondia atrás de palavras difíceis, nem construía torres de vaidade intelectual. Caminhava com o povo, falava ao coração do povo, sofria as dores do povo. Sua vida foi uma ponte viva — entre a Igreja e os pobres, entre o céu e a terra. Como em Pentecostes, foi sinal de unidade em tempos difíceis, farol de esperança em meio às incertezas.
Padre Cícero acreditava no poder da oração humilde, da confissão sincera, da caridade concreta. Pregava a conversão do coração, a paz que se constrói no dia a dia, a honestidade que dignifica e o trabalho que redime. E, por isso, deixou-se conduzir por ele, no seguimento de Jesus — não por imposição, mas por amor; não por força, mas por fé. Pentecostes não é apenas um acontecimento do passado. É uma realidade viva, permanente na história da Igreja. O Espírito continua a ser derramado, continua a soprar onde quer, suscitando santos, fortalecendo os pequenos, acolhendo os caídos, incendiando os corações com o amor de Deus.
Este mesmo Espírito fez de Padre Cícero um pai espiritual de multidões, fortalecendo a sua humilde e corajosa missão em Juazeiro do Norte. Diante da dor do povo nordestino, da seca, da miséria e do abandono, este exímio sacerdote escolheu amar, escolheu servir. Ele não se afastou dos pobres, mas se identificou com eles, ensinando-lhes a rezar, a plantar, a confiar em Deus. Em suas palavras simples e cheias de fé, dizia: “Com fé em Deus e trabalho, tudo se alcança”. Deste modo, podemos compreender que quando a secura dominava a paisagem e o chão se tornava áspero, Deus enviou um homem cujo olhar trazia a brandura do orvalho e cujas palavras refrescavam a alma sedenta de um povo sofrido. Este homem foi Padre Cícero Romão Batista, sacerdote da esperança, servo do povo e amigo fiel do Coração de Jesus. Onde muitos viam apenas aridez e miséria, ele via terreno sagrado, lugar de promessa, povo escolhido.
Na dureza do sertão, pela graça do Espírito Santo, Padre Cícero tornou-se sombra fresca e pão partido. Não se contentou em lamentar a sorte dos pobres: foi ao encontro deles. Seus gestos brotavam de uma caridade profunda, nascida da oração e cultivada no silêncio. Assumiu como missão acolher os abandonados, enxugar lágrimas escondidas e indicar aos esquecidos o caminho da dignidade. Foi, para muitos, pai espiritual, conselheiro, intercessor e, acima de tudo, pastor segundo o Coração de Cristo. Mesmo nas provações mais difíceis, conservou o espírito firme, a doçura no coração e a paz no olhar. A exemplo de tantos justos que a história consagrou, ele permaneceu de pé diante das tempestades, ancorado na vontade de Deus.
E que ministério fecundo ele exerceu! Levou o povo aos sacramentos como quem leva o sedento à fonte, restaurando com ternura os que se haviam perdido pelos caminhos da vida. Por sua palavra firme e doce apontava o caminho do trabalho, da oração e da partilha. Ensinou que Deus não abandona ninguém e que, mesmo na terra seca, há remédios escondidos pela mão do Criador para sarar as dores do corpo e da alma. A medicina da fé, que ele praticava com sabedoria, alcançava os corações aflitos com bálsamos de paz e reconciliação.
Olhemos hoje para a imagem tão conhecida e tão amada da Mãe das Dores. Aquela espada cravada em seu coração não é apenas símbolo de sofrimento é também sinal de entrega, de amor silencioso, de fé que permanece de pé mesmo diante da cruz. O Padre Cícero, esse homem de Deus, homem de fé profunda e silêncios cheios do Mistério sabia bem o que significava essa dor. Ele rezava olhando para aquela espada, mas não era só para contemplar era para entregar. Entregar as próprias dores. Dores que ele nem sempre conseguia explicar. Dores que não cabiam na lógica humana. Dores que ele confiava ao coração da Mãe para que fossem levadas ao coração do Filho.
Padre Cícero sabia o que muitos de nós ainda estamos aprendendo: que há sofrimentos que só podem ser depositados nas mãos de Deus. Porque só Deus pode nos dar serenidade quando tudo parece perdido. Só Deus pode nos dar confiança quando a vida se torna um mar de incertezas. Só Deus pode nos fortalecer quando a espada da dor nos atravessa. E essas espadas, meus irmãos, não são poucas. Às vezes vêm em forma de incompreensões, traições. Outras vezes vêm em forma de perdas, doenças, decepções. São espadas forjadas pela fragilidade humana, pela injustiça, pela maldade do mundo. Mas, mesmo diante delas, é possível permanecer de pé. Como Maria permaneceu de pé ao pé da Cruz. Como Padre Cícero permaneceu de pé diante das dores que lhes foram imputadas.
Hoje, com o coração reverente e a alma em vigília, encerramos a fase diocesana de um caminho trilhado há mais de nove décadas, mas que permanece vivo como chama acesa no altar da memória e da fé. Noventa e um anos após sua páscoa, elevamos ao seio da Mãe Igreja esta espada simbólica – não como arma de guerra, mas como lâmina de fidelidade, cravada no chão fértil do Evangelho. Um testemunho “cortante e penetrante como espada de dois gumes”. Esta espada é símbolo: é memória ungida, é testemunho gravado em ferro e espírito. Ela carrega as marcas do tempo, do sacrifício, do amor ofertado até o fim. Não é peça de museu, mas relíquia viva que corta o esquecimento e fere o coração com saudade santa. Ao entregá-la à Igreja – mãe e mestra –, confiamos que ela saberá reconhecer nesta lâmina as dores escondidas, as feridas silenciosas, os traços de sangue que o mundo não soube ver, mas que Deus recolheu com ternura e justiça.
Nesta adaga estão os ecos de um martírio cotidiano, discreto e fecundo; o fio da santidade que corta o orgulho e rasga as vestes da indiferença. Cada entalhe nela gravado é um salmo escondido, uma oração sussurrada no escuro, um "fiat" repetido com coragem. A Igreja, em sua sabedoria materna, saberá ouvir nesses sulcos o grito dos humildes e a glória dos que, na terra, viveram como servos inúteis, mas no céu brilham como estrelas. Confiamos esta entrega à Mãe Igreja como quem coloca no altar o fruto mais precioso: não um título, não uma glória humana, mas o testemunho de uma vida gasta por amor. Que o Espírito Santo, que sopra onde quer e como quer, faça desta lâmina uma chave para abrir os corações; que ela inspire os pobres, anime os cansados, provoque os indiferentes, converta os poderosos.
Aqueles que ouvirão esta história – contada não com triunfalismo, mas com gratidão – poderão perceber que a santidade não está nas alturas inalcançáveis, mas nas profundezas onde Deus habita: no sangue ofertado, na dor calada, no serviço escondido. Que esta espada, agora confiada à Igreja, se torne estandarte de esperança, sinal profético e profecia do Reino. E que um dia, pela graça de Deus e pelo discernimento da Igreja, possamos vê-la não apenas como símbolo, mas como selo: o selo da fé vitoriosa que um dia o Servo de Deus Padre Cícero receberá como coroa imperecível, pois “Deus nunca deixou trabalho sem recompensa nem lágrima sem consolação”.
Como Bispo da Diocese de Crato, sei que não poderei citar nomes, pois correria o risco de ser injusto aos olhos dos homens. No entanto, aos olhos de Deus, todos aqueles que ontem e hoje se dedicaram com amor e entrega a esta missão já estão no lugar mais sagrado da Jerusalém celeste: o coração de Deus. Deus, que tudo vê e conhece, recompensará cada gesto silencioso, cada sacrifício escondido, cada lágrima ofertada com fé. A todos que, ao longo dos anos, empunharam a espada dos sonhos – mesmo quando ela lhes deixou nas mãos as marcas inevitáveis dos combates da vida – eu rendo minha mais profunda gratidão. Vocês tingiram seus corações com o sangue do Cordeiro, fonte de redenção e esperança. Saibam que nada do que foi feito por amor se perdeu. Cada passo, cada esforço, cada semente lançada está guardada na memória de Deus. E Ele, que é fiel, saberá retribuir com abundância a generosidade de cada um. Com ternura e confiança, coloco todos vocês sob o olhar misericordioso do Senhor, certo de que Ele continua escrevendo, com suas vidas, uma bela página na história desta Diocese e de todos os romeiros que aqui deixam suas lágrimas, suas dores, seus agradecimentos e suas alegrias.
• Homilia de Dom Magnus Henrique, bispo da Diocese de Crato, para o encerramento da fase diocesana do inquérito de beatificação do Servo de Deus Padre Cícero
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